Nos últimos dias, o país acompanhou, em estado de choque, o caso da jovem carioca de 16 anos que foi vítima de um estupro coletivo praticado por 33 homens. Eles a teriam drogado, violentado sexualmente e ainda divulgado na internet as imagens da vítima nua, desacordada e machucada. Neste mesmo mês, foi noticiado outro estupro coletivo no Piauí, em que uma jovem de 17 anos foi violentada por cinco homens em um canteiro de obras.
Os casos ganharam repercussão nacional tanto na mídia como nas redes sociais, chamando a atenção da população para a cultura do estupro: um conjunto de práticas e valores que naturaliza esse tipo de comportamento do agressor e culpabiliza a vítima pela violência sofrida. Essa cultura é tão forte e enraizada em nossa sociedade que se reproduz, inclusive, nos ambientes que deveriam garantir proteção e justiça às vítimas: nas delegacias de polícia, nos hospitais, no Judiciário e em outras esferas do Estado.
Em entrevista publicada na Folha de São Paulo, o delegado responsável pelo caso ocorrido no Rio de Janeiro, Alessandro Thiers, titular da Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática (DRCI), afirma não poder pedir a prisão preventiva dos suspeitos por não ter certeza de se tratar de um caso de estupro – ainda que o vídeo divulgado aponte claros indícios e após a vítima confirmar o ocorrido. Ora, se num caso que ganhou tamanha repercussão nacional e no qual há provas concretas, a polícia continua a duvidar de que tenha sido estupro, o que se pode esperar dos incontáveis casos não noticiados, os quais são, frise-se, os mais frequentes?
O tratamento conferido às vítimas de violência sexual nas delegacias é mais uma agressão a essas mulheres. Perguntas a respeito de suas roupas, seu comportamento, consumo de álcool e drogas são frequentes, bem como questionamentos acerca do ocorrido: se a mulher tem certeza de que foi estuprada, de que não está inventando, se realmente resistiu ao ato, se ela na verdade não queria aquilo. O testemunho da vítima, que deveria ser o principal elemento a ser considerado em crimes de violência de gênero, como o estupro ou a violência doméstica, é habitualmente desqualificado. Esse tipo de tratamento não ocorre, por exemplo, em denúncias de crimes patrimoniais, como o roubo. Mesmo que não haja qualquer prova de sua ocorrência, o delegado não questiona a validade do relato. A diferença de tratamento é, portanto, resultado da cultura do estupro e misoginia institucionalizadas.
Em vista dos últimos acontecimentos, vale lembrar ainda que essa cultura que culpabiliza as mulheres pela violência sofrida não se manifesta somente nas delegacias, mas também no Congresso Nacional. Está em trâmite na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n. 5.069/2015, de autoria do deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Esse projeto de lei pretende dificultar o atendimento médico às vítimas de estupro e impedir-lhes o acesso a métodos legais de interrupção de gravidez. A lei atual prevê assistência imediata às vítimas de abuso sexual e estabelece que os hospitais públicos prestem serviço multidisciplinar à mulher, incluindo a “profilaxia da gravidez” (o uso da chamada “pílula do dia seguinte”), além de fornecer informações sobre direitos e serviços sanitários disponíveis, inclusive o aborto – que é legalizado nesses casos.
O PL 5.069/15 prevê que para receber atendimento médico, a vítima deve primeiro registrar o boletim de ocorrência em uma delegacia e provar o estupro através de exame de corpo de delito. No caso de estupros coletivos, o que teria acontecido com essas mulheres que precisavam de atendimento médico urgente? Teriam de esperar por horas na delegacia, onde provavelmente seriam desacreditadas e humilhadas, para só então – talvez – receberem o tratamento médico necessário. Além disso, o projeto prevê que os hospitais não serão mais obrigados a fornecer a profilaxia da gravidez e ainda estabelece a criminalização de quem ofereça ou induza a mulher a utilizar métodos considerados abortivos – o que pode incluir a pílula do dia seguinte.
Se aprovado, o PL 5.069/15 irá impor barreiras ainda maiores ao tratamento das mulheres vítimas de abuso sexual, o que aumentará o sofrimento dessas mulheres.
A cultura do estupro consolidada no Poder Legislativo vai além: após a repercussão do caso da jovem do Rio de Janeiro, já se debate o endurecimento de pena para casos de estupro. O deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ) – o mesmo que disse que só não estupraria a deputada Maria do Rosário (PT-RS) porque ela “não merecia” – divulgou em sua página do Facebook um vídeo sugerindo, além do endurecimento da pena, que a progressão da mesma para esteja condicionada à realização de castração química do estuprador. Essa ideia parte do pressuposto de que estupradores seriam “doentes”, “marginais”, seres que “não são homens de verdade”. A realidade é outra: homens que praticam estupro não são doentes. Não se trata de casos isolados, mas de pessoas ensinadas pela sociedade a desrespeitar e desconsiderar a autonomia das mulheres, o que leva a pensar que podem fazer o que quiserem com corpos femininos.
Não é a pena que deve endurecer, e sim a cultura do estupro que precisa ser combatida. Na medida em que esse tipo de agressão é naturalizada, aumentar a pena para estupradores não irá impedir que esses crimes continuem acontecendo e tampouco impedirá que continuem a ser tratados com misoginia nas delegacias ou no Poder Judiciário. Somente por meio de uma transformação cultural e institucional que elimine a desigualdade de gênero poderemos reverter esse quadro e garantir que as vítimas recebam tratamento adequado – sem culpabilização -, e que possam receber atendimento médico imediato e justiça.
Por Ana Paula Braga e Marina Ruzzi, advogadas, sócias da Braga & Ruzzi Sociedade de Advogadas e integrantes da Rede Feminista de Juristas
Oi, estou fazendo um TC acerca desse tema e estou a procura de autores e correntes que possam embasar minha tese, vocês teriam alguma sugestão? Agradeço desde já.
Olá, estou lendo os textos de vocês aqui no blog e estou amando! Só queria fazer um comentário a respeito desse post. Também tenho a plena convicção de que a castração química não resolva o problema de estupros, entretanto, muitos estupradores sofrem de alguma desordem, como depressão, psicose, e por aí vai, algumas até reconhecidas pelas DSMs. Mas mesmo diante desse cenário, eu não vejo a castração como tratamento, porque ela nunca será capaz de por si só alterar direção para onde a libido do estuprador está indo, que é gozar através do sofrimento do outro. Isso porque a vontade de subjugar o outro, seja ele uma mulher, criança, animal, e por aí vai, se origina na psiquê e não no pênis.
Por isso, o maior problema da castração química, a meu ver, é justamente o que foi dito no texto de não mudar a cultura que muitas vezes até estimula a violência contra mulheres e crianças (vide a ideia de que a mulher tem que ser submissa e a sexualização de tantas crianças, por ex.). E de, além disso, não dar tratamento próprio aos estupradores que tiverem alguma questão psicológica a ser tratada.
No mais, acho muito provável que se ela for aplicada, o dia no qual o estuprador submetido a ela estuprar outra mulher, esta será vista como mentirosa, porque afinal “é impossível”. Penso que o Direito Penal precisa muito melhorar, porque somente encarcerar os estupradores e abusadores de menores não está adiantando, razão pela qual o índice de reincidência é enorme, mas também não vejo a castração química como solução.