A pauta da violência contra a mulher está em alta. Somente no ano de 2018, ao menos nove leis novas foram promulgadas. E 2019 não está sendo diferente. Vários são os projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional para o enfrentamento à violência de gênero. O problema é que nem todos esses projetos são de fato efetivos. E pior, alguns deles são bastante temerários à luta das mulheres, invisibilizados por um manto de suposta proteção.
Nos últimos meses, dois projetos de lei para alteração da Lei Maria da Penha chamaram a atenção: O PL 92/2018 e o PL 510/2019.
PL 510/2019 e o direito ao divórcio imediato
O PL 510/2019 permite que as vítimas de violência doméstica tenham direito imediato ao divórcio ou rompimento da união estável.
Em primeiro lugar questiona-se qual a efetividade dessa proposta? O divórcio, desde a promulgação da Emenda Constitucional n. 66/2010 já é um direito do cônjuge que não deseja permanecer casado. Se antigamente era necessário provar a culpa de um dos consortes pelo fim do casamento e aguardar um lapso temporal para pedir a separação, atualmente isso não é mais necessário. Pode-se colocar fim ao matrimônio tão logo se desejar. E não cabe ao marido ou à esposa negar esse direito.
Assim, o projeto aparenta muito mais ser uma medida sensacionalista e desprovida de efeitos práticos. Talvez a grande diferença seja o fato de que, caso aprovada a lei, o divórcio poderá ser concedido através de uma medida protetiva de urgência e em caráter liminar, e não através de um processo judicial completo. Assim, restaria para uma fase processual mais prolongada somente a discussão acerca de uma eventual partilha de bens, guarda de filhos e pensão alimentícia.
Novamente, não se apresentam motivos para comemorar. Primeiro porque já existe uma medida protetiva de urgência que decreta a separação de corpos prevista pelo art. 23, IV da Lei Maria da Penha. Com isso, já se garante à mulher a proteção esperada, uma vez que interrompe o dever de coabitação e a partilha de bens e dívidas.
Em segundo lugar, a medida provavelmente encontrará barreiras de aplicação pelo Código de Processo Civil. Isto porque, de acordo com o artigo 300 § 3º do CPC, a tutela de urgência de natureza antecipada não será concedida quando houver perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão, como é o caso.
Por fim, não podemos ignorar que a violência doméstica opera em ciclos, e que é bastante comum que após a fase de agressão, sobrevenha a fase de lua-de-mel. Nela, o agressor pede perdão e promete que vai mudar. Por isso, não raro ocorre a reconciliação. Agora imaginemos que a retomada da relação ocorra após a decretação de um divórcio liminar e impensado? Como fica a situação dessa mulher?
Caso ela resolva retomar o casamento, será necessário celebrar novo matrimônio. E é aí que mora o problema. Se o primeiro divórcio tiver sido decretado liminarmente, restará pendente ainda a partilha de bens. E de acordo com o art. 1.523. do Código Civil, não deve casar o(a) divorciado(a), enquanto não houver sido homologada ou decidida a partilha dos bens do casal. Esta é uma das chamadas “causas suspensivas do casamento”, em que o legislador desaconselha as pessoas a casarem, pois existe uma situação ainda pendente de ser resolvida. Nestes casos, a fim de garantir segurança jurídica, o casamento será obrigatoriamente celebrado no regime de separação total de bens (art. 1.641, inciso I).
Em casos de violência doméstica, em que a mulher seja economicamente dependente de seu marido, essa disposição irá apenas empurrá-la para um grau ainda maior de vulnerabilidade.
Por isso, muito mais do que aprovar medidas sensacionalistas e distantes do senso de realidade da violência doméstica, precisamos pautar educação e conscientização. As mulheres precisam, antes de mais nada, CONHECER as implicações de um divórcio, saber seus direitos, para então se resguardarem e protegerem. Defendemos que, ao invés de se decretar liminarmente um divórcio, seja oferecido o serviço de orientação jurídica sobre os desdobramentos que essa mulher enfrentará na esfera da família.
PL 94/2018: a concessão de medidas protetivas pela autoridade policial
Outro perigoso projeto recém aprovado no Congresso prevê que em caso de violência doméstica em que a vítima esteja em risco, não somente o juiz poderá decretar o afastamento do agressor do lar, como também o delegado e até mesmo o próprio policial.
As medidas protetivas de urgência são das maiores conquistas da Lei Maria da Penha. Trata-se de decisões liminares, contendo ordens que determinam condutas para o agressor sob pena de prisão preventiva. Não se nega que ainda há muito o que fazer para que elas sejam de fato efetivas em todo o território nacional. São várias as denúncias de demora na concessão das protetivas ou da ausência de sua fiscalização.
Apesar de a ideia do projeto ser, justamente, de conferir maior agilidade e proteção imediata à mulher em situação de risco, é preciso ressaltar que, ao conferir essa competência às autoridades policiais, corre-se grande risco de se surtir efeito contrário e esta medida se configurar, na verdade, em um novo óbice à proteção das mulheres. Já resta claro, por meio das incontáveis notícias, pesquisas e relatos, que uma das maiores barreiras das mulheres em situação de violência doméstica é justamente o tratamento humilhante e machista que recebem em Delegacias.
As polícias do país, em sua grande maioria, ainda são despreparadas para lidar com violência de gênero. Entre as grandes queixas das mulheres que se encontram em situação de violência e que buscam ajuda policial, está a falta de acolhimento e de atenção a seu problema. Não raro, mulheres têm seus depoimentos questionados, menosprezados, além de serem culpabilizadas pela violência que sofrem, saindo muitas vezes da delegacia sem sequer conseguir registrar boletim de ocorrência. Quem dirá então ganhar as medidas protetivas de que tanto necessitam.
Existem, sim, muitos profissionais sensíveis e que realmente transformam a vida das vítimas por meio de palavras e ações, especialmente nas delegacias especializadas de atendimento à mulher. Mas não podemos ignorar a realidade brasileira, em que centenas de municípios não contam com esse tipo de serviço.
Dessa forma, deixar para a autoridade policial ou para o próprio policial a responsabilidade de conceder uma medida protetiva de urgência, nas condições em que a instituição costuma agir em casos de violência de gênero, é no mínimo ingênuo.
Além disso, o artigo 12-C sofre de clara inconstitucionalidade, pois ofende o princípio constitucional da separação de poderes, uma vez que confere a um órgão do Poder Executivo competência jurisdicional de apreciar direitos fundamentais sensíveis. Sendo assim, é possível que haja uma futura ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, o que poderá enfraquecer a Lei Maria da Penha e causar insegurança jurídica às mulheres que tiveram suas medidas protetivas deferidas inconstitucionalmente por membros da polícia.
Não há respostas fáceis para combater o problema complexo que é a violência contra a mulher. Por isso não podemos ser seduzidas por soluções punitivistas que apenas reforçam desigualdades e violência institucional. Precisamos combater as estruturas do problema e cobrar para que as soluções normativas já existentes possam funcionar corretamente.
Por Ana Paula Braga e Marina Ruzzi, advogadas e sócias da Braga & Ruzzi Advogadas, primeiro escritório do Brasil especializado em Direito das Mulheres.